A dúvida radical de Descartes representa muito bem o espirito humanista da modernidade, com a destituição das cosmologias, a crítica às autoridades religiosas e sua substituição pelo primado da razão e liberdade humana.

O espirito crítico iniciado por Descartes e seguido pelos filósofos do Iluminismo, no entanto, transcenderá o período da modernidade para na fase seguinte, conhecida como pós-modernidade, corroer as próprias edificações erguidas pelos pensadores das luzes. 

Para os pós-modernos, especialmente Nietszche, o erro do iluminismo teria sido a preservação de ideais superiores ao próprio homem e ao mundo real. Os Direitos humanos, a ciência, a democracia, o socialismo, a igualdade de oportunidades, por exemplo, seriam todos exemplos de utopias ou formas de religiosidade sem Deus, que Nietszche passa a chamar de ídolos. 

Melhorar a humanidade? Eis a última coisa que eu prometeria. Não esperem de mim que eu erija novos ídolos! Que os antigos aprendam antes quanto custa ter pés de barro! Derrubar “ídolos” — é assim que chamo todos os ideais —, esse é meu verdadeiro ofício. (NIETZSCHE, 2008, p.16).

A leitura deste trecho de Nietzsche é fundamental para a compreensão do atual vazio de sentido que herdamos dos chamados filósofos da suspeita. 

O atual vazio de sentido característico dos dias atuais deve-se, em grande parte, ao legado dos chamados filósofos da suspeita. Herdamos de pensadores como Nietzsche, Freud e Marx a constante desconfiança das intenções ocultas por traz de qualquer coisa que se mostre como verdade superior, valor, tradição ou costume e que geralmente aparecem travestidos de boas intenções. Qualquer coisa que seja diferente à realidade como ela mesma é.

O mundo materialista e livre de ídolos acabou assim, por fortalecer o tecnicismo, o livre mercado, o capitalismo e o consumismo que formam esta complexa máquina autômata que se auto-regula e dita o ritmo das nossas vidas totalmente alheia a qualquer ideal ou lógica de sentido. 

É exatamente isso, essa “tecnicização do mundo” que ocorre, segundo Heidegger, na história do pensamento, com a doutrina nietzschiana da “vontade de poder”, na medida em que desconstrói e até destrói todos os “ídolos”, todos os ideais superiores. (FERRY, 2012, p. 144).

Ultimamente temos vivenciado dias bem incomuns, onde a disseminação de um vírus potencialmente letal obrigou as pessoas a refugiarem-se em suas casas. 

A máquina do mundo contemporâneo parou. E quando as engrenagens do mundo param, perdidos em meio ao vasto oceano das incertezas e da falta de sentido, percebemos o que estava oculto. Voltamos nossas atenções para nossos entes e a convivência em família. Voltamos a avaliar o preço a que estamos acostumados a comercializar nosso tempo. No contraste, na solidão do isolamento social, valorizamos a manifestação do Ser em cada um de nós e o valor do convívio social. Este momento dramático em que vivemos nos convida para esta auto-reflexão. 

Para a expansão do pensamento que não mais se apega nem ao ceticismo nem ao dogmatismo, mas a uma visão de mosaico – distanciada, ampliada e aberta para a auto-crítica e para as diferentes formas de se viver a vida e de se ver o mundo. O que Luc Ferry chamou de pensamento alargado, “Afastando-me de mim mesmo para compreender o outro” (FERRY, 2012, p. 163).

Para a necessidade de vivermos conjuntamente na construção de propósitos despidos da ambição de criar mundos utópicos mas que nos permitam agir de forma a melhorar as condições de vida e bem estar de segmentos da sociedade onde estamos inseridos. 

A esperança que podemos ter, está na possibilidade de vivenciar, cada vez mais, a experiência do sagrado que se manifesta nesta relação verdadeira de convivência, respeito, amor e pertencimento, com os outros e com o mundo.

Diouglas Hoppe

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1 comentário

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  • Este momento de isolamento, em que deparamos conosco mesmos sem máscaras, com nossos sentimentos gerados pelas expectativas em relação aos outros, provocando primeiro uma revolta, mas depois um entendimento do outro sem as máscaras dele, é um momento de profunda dor. Mas começamos a sentir a realidade como chão, e só se constrói sobre a realidade. Sinto que estamos nos desconstruindo para então nos reconstruirmos. Solve et coagula. Que possamos trilhar os caminhos perfeitos de Deus.

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